A criatura mais solitária do mundo

Mapa labiríntico da Unicamp

 

 

Amores, amizades, ressurgis

Do olvido como um conto meio extinto;

Renasce a dor, que em seus lamentos diz

Da vida o estranho, errante labirinto.

Evoca os bons que a sorte tem frustrado,

E antes de mim, a luz arrebatado.

Fausto, Goethe

 

Para contemplar a partir de seu exterior os muros de um labirinto não é preciso ser sensível aos valores humanos. Em um dos volumes das Cartas edificantes de Jairo Liro Mezzaro, publicadas pela primeira vez em São Petersburgo no século XVIII, o padre planejou um exame detalhado dos erros e ilusões provocados por tão intrincada arquitetura. Num levantamento preliminar anotou que na espessura central dos seus bosques era cultivada uma erva singular, um tanto assombrosa, mas plausível. Se em outros monstros combinam-se espécies e gêneros, em tal planta é o Reino Vegetal e o Reino Animal. Dizia que, tendo suas folhas feridas, brotavam ao mesmo tempo sangue e palavras. Por isso era preciso extirpá-la pela raiz, muito antes que seus gritos fossem capazes de inundar um país inteiro, despertar perguntas que nenhum ser humano é capaz de responder e gerar incontornável inquietação popular. Mas o trabalho iniciado por sua pena pareceu inconcluso, já que o padre galhofeiro faleceu como facínora alguns anos depois.

Na História Geral dos Labirintos, de Silas Haslam, consta que em 1981 os povos da Terra tentaram invadir o labirinto. A hipótese era que esse admirável mundo novo fosse obra de uma sociedade secreta de engenheiros, físicos, biólogos, poetas, químicos, moralistas, pintores, antropólogos, dançarinos, oportunistas e matemáticos. Acreditava-se que seu edifício era um mero caos, uma licença irresponsável da imaginação. O fato de que ali havia sido provada a forma esférica do mundo e de todos os seres, confundiu os obtusos seres terrestres que não queriam entender que o movimento circular dos corpos era espontâneo e voluntário. Também não admitiam a possibilidade de que os bem aventurados ressuscitariam em forma esférica e entrariam rolando na eternidade. Ao cabo de sangrentas batalhas, as artes mágicas do Imperador Escarlate prevaleceram e os invasores foram expulsos. No entanto, o anfiteatro do sol ficou a descoberto, a torres eletrônicas foram desmanteladas e do refeitório só sobraram os bancos de cimento, provas concretas de que nenhum território permanece pacífico para sempre. Naquele tempo, o mundo do labirinto e o mundo dos homens ficaram incomunicantes e muito diferentes um do outro: não coincidiam nem os seres, nem as formas, nem as cores.

Certa vez, bisbilhotando livrarias em Corrientes, encontrei um exemplar em português do Há um mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Ali havia uma referência a um conto de Jorge Luis Borges, no qual o autor argentino afirmava ser a metafísica uma variante da literatura fantástica, pois ambas buscavam o assombro. Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro escrevem que a recíproca também deve ser verdadeira, a literatura fantástica e, acrescentam, a ficção científica, são metafísicas pop, ou “mitofísicas de nossa época”. O conto em questão era o “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, no qual acompanhamos Borges em sua busca por mais informações sobre Uqbar, país desconhecido, do qual sabía-se apenas aquilo que constava em um curto verbete na Anglo-American Cyclopaedia: um pouco da geografia, idioma e literatura. Em especial havia um trecho sobre a literatura de Uqbar, dizendo que era de tipo fantástica e que suas epopeias e lendas jamais se referiam à realidade, senão às regiões imaginárias de Mlejnas e Tlön. Disso, e da metafísica, eu pouco sabia e inúmeras vezes, sem terminar a estória, tentei decifrar o enigma por conta própria.

Percorridos em vão os atlas, catálogos, anuários de sociedades geográficas, memórias de historiadores e viajantes da Biblioteca Nacional, o fato é que apenas dois anos depois Borges se deparou por sorte com o volume avulso de número onze, muito inteiro, articulado e coerente, que não tratava de um país fictício, mas de todo um planeta desconhecido e muito ordenado chamado Tlön. Em tal mundo tudo era concebido como uma série de processos mentais, não havia materialismo, e se havia era ridicularizado. Mas eu discordava, pois dependendo de como a linguagem fosse usada, tudo podia ser alterado. Por isso as diferentes escolas dali descrevem, cada uma a sua maneira, como o planeta é organizado. Nisso Tlön era, para mim, muito parecido ao que Shevek lembrava das conversas que tinha no planeta Urras com físicos, lógicos, matemáticos, astrônomos e biólogos da Universidade em Os Despossuídos. Bastava iniciar uma conversa para que nascessem novos mundos. Shevek certa vez me disse que é da natureza da ideia ser comunicada, escrita, falada, feita. A ideia para ele era como a grama, anseia a luminosidade, adora as multidões, subsiste aos entrecruzamentos, cresce melhor por ser pisada. Ao fim e ao cabo, descobrimos que os escritos sobre Tlön atravessaram épocas e nações, mas era fruto da megalomania de uma sociedade nebulosa chamada Orbis Tertius, nunca existira de fato. Isso não impediu Borges de ter testemunhado a intrusão dos objetos de Tlön em algumas situações: uma bússola com símbolos do planeta na Rua Laprida, um cone e algumas moedas muito pesadas com a imagem da divindade de Tlön na loja de um brasileiro em Cuchilla Negra. Se havia compatibilidade entre o mundo de Tlön e a realidade é algo difícil de ser totalmente compreendido. Sabemos apenas que Tlön era um labirinto, um labirinto feito pelos homens, publicado em enciclopédias fictícias, e destinado a que fosse decifrado pelos próprios homens.

Então eu precisava coragem para retornar ao labirinto. Temia que tudo fosse como em “Os Dois Reis e os Dois Labirintos”. Conta também Borges na página 157 de Ficciones, uma edição especial que trouxe da Espanha, que certa vez um rei da Babilônia construiu um labirinto tão confuso e sutil, que poucos se aventuravam a entrar e os que ali entravam se perdiam. Não parecia coisa humana essa junção entre confusão e maravilha. Para humilhar o rei árabe que estava de passagem, o rei da Babilônia o induziu a penetrar no labirinto. Ao entardecer e um tanto desesperado o rei árabe implorou socorro divino. Nunca saberemos se tal divindade tinha ou não cabeça de cavalo, caudas de serpente, grandes asas laterais e garras de macaco, se era uma imagem aterradora ou ridícula, mas sabemos que uma porta de saída se abriu. Para se vingar, o rei reuniu os melhores cavalos e soldados da Arábia, destruiu a Babilônia e resolveu mostrar ao rei capturado como era o labirinto em suas terras. Não havia nele escadas, nem paredes de bronze, portas ou muros. Esse labirinto era o deserto, onde o rei da Babilônia foi abandonado e acabou morrendo de fome e sede. Ora, se eu não era capaz de atravessar uma parede maciça, voar pelos ares por longas distâncias ou me tornar bruscamente invisível, de onde tirar forças para atravessar tal desolação inabitada e muda, que podia ser de areia, mas também de rocha, gelo, céu ou silêncio?

Às vezes, pouco antes de definitivamente atravessar suas portas, tinha um sonho recorrente com “O Jardim dos Caminhos Bifurcados”, a última estória que ouvi de Borges, em que livro e labirinto constituíam o mesmo objeto, formando um labirinto mínimo e infinito. Em todas as ficções, qualquer um ao se deparar com muitas alternativas optaria por uma, eliminando as outras. No livro-labirinto, opta-se simultaneamente por todas, criando diversos porvires, diversos tempos que proliferam, bifurcam e às vezes convergem. Assustador era que ali o tema era o tempo, mas ninguém pronunciava tal palavra. Isso porque tudo não passava de um jogo, em que omitir uma palavra, recorrer a metáforas ineptas, era talvez o modo mais eficiente de indicá-la. Assustador era que eu também acreditava que o tempo se bifurcava perpetuamente criando inúmeros futuros. Apesar das inúmeras tentativas de imposição de um tempo uniforme e absoluto, acreditava nessa trama crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes, paralelos, que abarca todas as possibilidades sem que alguém tenha que existir necessariamente em todas elas.

Quando consegui permissão para entrar no labirinto mais uma vez, pois era preciso saber latim, resolvi seguir o conselho de sempre dobrar à esquerda para descobrir o pátio central dos labirintos, mas depois de cinco anos só encontrei a Praça da Paz. No frontão de um edifício vermelho avistei quatro lances de escada. Ali vivia em estado letárgico um ser semelhante a uma lâmina de contornos muito vagos, que só desfrutava de vida consciente quando alguém subia os degraus. Alcei os olhos para cima com certa contrição e cansaço, mas ao iniciar a subida a vibração de meus passos incutiu vida naquele ser misterioso e uma luz interior se insinuou nele. No início, com uma cor indefinida e luz vacilante, tal ser não conseguia se transformar totalmente, e sua queixa era semelhante ao roçagar da seda. Aos poucos, os prolongamentos de seu corpo se multiplicaram em inúmeros outros seres, atingindo a forma perfeita, ou completa, no último lance, quando conseguiu me olhar e se expressar com o corpo inteiro, e finalmente rolar de volta para o início à espera do próximo visitante. Só do alto das escadas pude então contemplar a paisagem mais maravilhosa de todas as terras, avistei um labirinto onde do alto de um edifício vermelho era possível divisar uma criatura em êxtase. Sabe-se que nem a boa memória de todos os sacerdotes foi capaz de recuperar todos os relatos do labirinto, mas há quem diga que aquela era a criatura mais solitária do mundo.

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