Tradução de Infraestruturas autônomas feministas
Por Daniela Araujo, Daniela Manica e Marta Kanashiro.
Sophie Toupin e Alex Hachè assinam o artigo “Infraestruturas autônomas feministas”, cuja tradução apresentamos aqui. Sophie Toupin é atualmente doutoranda no Departamento de História da Arte e Estudos da Comunicação da Universidade McGill, onde investiga a relação entre tecnologias de comunicação e movimentos revolucionários anticolonialistas. Como pesquisadora e ativista se dedica ao estudo das conexões entre tecnologia e feminismo através da abordagem etnográfica e colabora com projetos e coletivos hackerfeministas. Alex Hachè é socióloga, PhD em economia social e pesquisadora em TICs para o bem público, com foco sobre a elaboração de políticas públicas no campo da inclusão digital. Está engajada com movimentos e projetos relacionados ao software livre, à cultura livre e às relações de gênero na tecnologia. Também é fundadora do coletivo ciberfeminista catalão Donestech.
O texto de Sophie Toupin e Alex Hachè, Infraestruturas autônomas feministas, foi originalmente publicado em 2015 no Global Information Society Watch (GISWatch), relatório online produzido e divulgado anualmente, desde 2007, pela Association for Progressive Communications (APC) em conjunto com organizações parceiras. Foi traduzido para o português durante a organização do dossiê “Tecnopolíticas de gênero”, publicado em 2021 na revista Cadernos Pagu.
O GISWatch Report propõe o monitoramento dos progressos na implementação da agenda de ação da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (Genebra, 2003 e Túnis, 2005) e de outros compromissos internacionais e nacionais relacionados a informação e comunicação. A cada edição, o relatório traz uma perspectiva analítica dos avanços e problemáticas em torno dos compromissos assumidos nos encontros da Cúpula.
Na edição de 2015, o GISWatch abordou Os direitos sexuais e a Internet (Sexual rights and the internet), partindo do entendimento de que a sexualidade é um aspecto crítico da liberdade de expressão. As análises publicadas chegaram à constatação de que há um distanciamento entre as políticas e os direitos da Internet no que diz respeito à sexualidade e aos direitos sexuais.
Não é a primeira vez em que o relatório dedica uma edição inteira aos temas de gênero e sexualidade. Em 2013, o título do relatório foi Direitos das Mulheres, Gênero e Tecnologias de Informação e Comunicação (Women’s rights, gender and ICTs). Ambas as publicações, bem como muitos outros textos publicados nas demais edições do relatório, refletem o trabalho desenvolvido pela APC sob o guarda-chuva temático de “gênero e tecnologias da informação”. Suas principais ações são apoiadas pelo Programa de Direitos das Mulheres (Women’s Rights Programme), mantido pela organização.
Fundada no final dos anos 1990, a APC é uma associação internacional sem fins lucrativos, constituída a partir da conexão de sete outras organizações*, engajada na promoção de infraestrutura de comunicação para grupos e indivíduos que trabalham em prol da mudança social em temas como paz, direitos humanos, proteção do meio ambiente e sustentabilidade e o intercâmbio de conhecimentos entre eles. A organização assume como princípio que o acesso a uma internet livre e aberta é um direito de todas pessoas e, a partir disso, trabalha no apoio e fomento a atores da sociedade civil que contribuem para este objetivo em diversos países do mundo, com especial atenção para as organizações e demandas do sul global.
Entre as ações realizadas no escopo do Programa de Direitos das Mulheres da APC, os Princípios Feministas para a Internet recebem a atenção de Toupin e Hachè no texto cuja tradução apresentamos aqui. A primeira versão dessas diretrizes começou a ser elaborada em abril de 2014, quando ativistas de gênero e de direitos das mulheres, representantes de movimentos LGBTQI+, organizações de defesa dos direitos na internet e tecnoativistas e defensores de direitos humanos se reuniram na Malásia para o encontro global sobre gênero, sexualidade e internet (Imagine uma Internet Feminista). Nos dois anos seguintes, o primeiro esboço foi aprimorado e resultou em um total de dezessete princípios organizados em cinco eixos: Acesso, Movimentos, Economia, Expressão e Agência.
Em linhas gerais, as ideias expressas nos documentos advogam pela democratização do acesso e pela liberdade de expressão, tendo gênero e sexualidade como parâmetros a serem considerados; afirmam a internet como espaço de articulação e resistência dos movimentos sociais e ressaltam a importância da garantia desse direito; propõem que a governança da internet inclua a participação de mulheres, pessoas trans e queer nos processos de decisão; estimulam o desenvolvimento de economias alternativas, baseadas em cooperação, abertura e sustentabilidade, ratificando os compromissos com as políticas de software livre e código aberto; e correlacionam consentimento, privacidade, controle dos dados pessoais e anonimato às práticas de enfrentamento à violência de gênero.
O ano da publicação original do artigo Infraestruturas autônomas feministas, 2015, foi particularmente frutífero para as intersecções entre Feminismos e Internet, especialmente na América Latina. As redes sociais foram tomadas por campanhas através de hashtags que mobilizaram debates sobre as múltiplas manifestações da violência de gênero, a exemplo do caso #meuprimeiroassedio, utilizada para visibilizar os assédios sofridos por mulheres na infância e adolescência. A ação chegou a 82 mil postagens com relatos pessoais e ganhou posteriormente uma versão em inglês (#FirstHarassment).
As ruas também foram tomadas por protestos em defesa da vida e dos direitos das mulheres. No Brasil, as manifestações contra o PL 5069/2013, proposto por Eduardo Cunha, levou milhares de mulheres às ruas. O projeto dificultava o acesso de vítimas de estupro a cuidados médicos essenciais e à profilaxia da gravidez. Também foi naquele ano a Primeira Marcha das Mulheres Negras, que reuniu em Brasília mais de 50 mil ativistas. Na Argentina teve início o movimento Ni una a menos, que em pouco tempo atingiu outros países, como Chile e Uruguai, e denunciava os números alarmantes de feminicídios nos estados latino-americanos. Estas manifestações foram também retratadas e articuladas em redes sociais em sincronia com as vozes das ruas.
Contudo, como é típico dos movimentos de contestação, as redes e ruas também foram tomadas por ataques ostensivos que se traduziram em violência baseada em gênero, racismos e discursos de ódio. E é nesse paradoxo das redes, que são ao mesmo tempo potência e oposição à proliferação das pautas feministas, que reside a riqueza do artigo de Toupin e Hachè. Ao questionarem “onde estão os coletivos feministas de tecnologia que projetam e mantêm infraestruturas autônomas feministas para feministas, pessoas queer e trans e ativistas em geral”, as autoras provocam, e até mesmo convocam, os coletivos a irem além da superfície visível das mídias sociais, e ocuparem também a camada invisível das infraestruturas de rede. Estratégia que se apresenta ainda mais urgente no conturbado ano de 2021, e em meio à pandemia do coronavírus. Assim, ainda atual, o texto procura explorar as implicações do apagamento dos feminismos e de uma perspectiva interseccional de gênero na construção das alternativas tecnológicas.
Confira a tradução completa aqui.
* GreenNet/Inglaterra; IGC/Estados Unidos; NordNet/Suécia; Web/Canadá; IBASE/Brasil; Nicarao/Nicarágua; Pegasus/Austrália
Descrição da imagem: Fotografia retangular e colorida. No canto esquerdo, aparece parcialmente a cabeça e o ombro de uma mulher negra que está de costas e vestida com uma blusa de lã preta. No centro da fotografia está a imagem desfocada do monitor de um computador que apresenta uma tela preta com códigos escritos em letras coloridas. Fim da descrição.
Créditos da imagem: Nanda Monteiro.