A tecnologia de escrita de Michaela Coel
“Nomear é um assunto sério, isto é, pragmático, quando significa dar àquilo que nomeamos o poder de induzir o pensar e o sentir de uma maneira particular.” Isabelle Stengers, 2014, p. 1 (tradução minha)
Em 2020, a HBO exibiu a série I May Destroy You, que rendeu o Emmy de Melhor Roteiro à britânica Michaela Coel, também produtora, diretora e atriz principal. I May Destroy You parte da história de uma violência sexual sofrida pela protagonista, a jovem e estreante escritora Arabella, drogada por um estranho em um bar. A série circula entre o tema pesado e difícil e um tratamento realista e fascinante do desenrolar da vida de pessoas que foram violentadas, com personagens complexos que não têm suas personalidades construídas em torno das violências sofridas. O objetivo do Coel não é conquistar a empatia do público sobre os personagens. Ao fazer isso, incita o debate sobre o direito à autonomia e respeito que não passa por uma avaliação do caráter, comportamento ou preferência das pessoas.
O fato de ser constituída por personagens de maioria negra aprofunda a questão na medida em que não aposta em uma história estereotipada do racismo, embora o tema, evidentemente, esteja presente o tempo todo. São jovens que trabalham, “ralam”, e também se divertem, sentem prazer em estar juntos, fazer festas e usar drogas. A concentração no tema do abuso/consentimento e sua relação com o racismo é bem manifesta em uma fala de Arabella, quando ela diz que passou a vida toda tão atravessada pelo fato de ser pobre e negra que não havia se dado conta de que era, também, uma mulher, revelação que parece ter sido feita pela própria violência.
Em meio ao processo de lidar com o episódio vivido, entre flashes de memória, depoimentos na delegacia e conversas com os amigos, Arabella está travada na escrita de seu segundo livro. A história que a série encena parece se confundir com a história do livro, embora a espectadora não tenha muito acesso a ela, e mistura-se também com a realidade da autora. I May Destroy You é um “resultado” da experiência de violência sexual vivida por Coel, que a cena do abuso de Arabella reproduz quase totalmente – Coel escreveu I May Destroy You após um episódio traumático ocorrido enquanto ela fazia um intervalo da escrita de Chewing Gum. A história (e a escrita) revelam-se tecnologias de Michaela Coel no enfrentamento de seu próprio processo, e assim também é com Arabella, embora isso só fique mais claro nos episódios finais. Durante a série, a escrita é um produto que ela precisa entregar aos editores e funciona como um personagem-testemunho do seu trauma.
Há várias formas de compreender o final da série. Particularmente, chamou-me a atenção um elemento que pairava sobre a história desde o começo: o ato de nomear. No último episódio, a noite do abuso é reencenada em uma temporalidade de suspensão, uma espécie de experimento da autora/personagem para testar versões próprias para sua experiência. A espectadora é convidada a dar vida ao algoz da protagonista, ao repassar o acontecimento do ponto de vista de três “versões alternativas” do evento. Primeiro como vingança, depois como humanização que gera empatia pelo agressor (que aparece como uma pessoa que só é violenta porque sofreu, ela mesma, traumas e violências) e, por fim, como uma versão ainda mais imaginativa. É nesta terceira alternativa que a ideia de “nomeação” ganha força.
Pela primeira vez o bar é imaginado como algo absurdo: vazio e silencioso, pois só estão ali Arabella, Patrick (o agressor) e outras duas pessoas. Arabella se aproxima, deseja e seduz o homem, convida-o para sua casa e transa com ele em sua cama, produzindo uma certa história de consentimento. Numa parte da cena da transa, Arabella fica por cima de Patrick, que está de costas para ela. A cena se passa como uma alegoria da nova posição de Arabella, agora “por cima” de Patrick. Na manhã seguinte, este Patrick vai embora da casa de Arabella levando consigo os “outros Patricks” imaginados nas versões anteriores.
O estranhamento a que Coel nos conduz tem a ver com trazer à cena o homem que a violentou, dar-lhe cara e história, mas, talvez principalmente, dar ao acontecimento o seu toque próprio. Tem a ver com uma nomeação própria do que lhe ocorreu como forma de expressão de sua história controversa, confusa, onde violência e criação se emaranham. Ao trazer o inesperado à cena (as versões inesperadas), Coel constrói uma versão para sua história sem que ela seja um desfecho: ela é mais um convite à especulação como forma de viver. Contar histórias menos como forma de resolver, e mais como forma de seguir. I May Destroy You não é uma história de vingança, mas sim um povoado de pessoas e de modos de relação que tensionam nossas expectativas sobre várias coisas: sobre pessoas negras, mulheres, trabalhadores e trabalhadoras, perigo, vulnerabilidade, violência, consentimento e “justiça”. Gente que se diverte, faz besteira, vive perrengues e tem algo a dizer sobre si.
Nem todas as pessoas lidam com seus traumas sob signos esperados, na mesma medida em que o “ideal” de vítima de uma violência sexual não existe – não tem a ver com a roupa que se usa, seu comporatamento, idade, sexualidade ou gênero. Esta é uma questão complexa que esbarra em limites sobre os corpos, desejos e consentimento, isto é, questões sobre o desejo de viver ao seu modo e se deparar com obstáculos a isso. O que a série parece levantar é o problema de como as pessoas nomeiam, narram suas experiências, e a eficácia deste ato de nomear, ou seja, a capacidade destas narrações de efetivamente produzir algo (diferente) em suas vidas.
Grupos minoritários lutam para não serem definidos pelas violências que as estruturas de dominação lhes causam. Essas experiências dão o contorno de boa parte de suas vidas, mas não são a única coisa que se tem a dizer sobre elas. Identidades e certas narrativas (sejam elas hegemônicas ou forjadas dentro de grupos por razões de estratégia política) não são tudo que há para dizer sobre alguém ou um grupo de pessoas. A possibilidade de inventar as próprias versões das experiências difíceis que vivemos é potente na medida em que rompe com o que é esperado, com definições prévias ou tentativas de capturar algo em torno de uma única definição ou de uma única cena, deixando aberturas para novas relações e novas histórias.
Legenda ou descrição da imagem: Arabella diante dos post-its que usa para organizar a história do seu livro.
Créditos da imagem: HBO