O suplício do Papai Noel e o ataque ao vermelho no Brasil de hoje

Meus filhos Isabel (7 anos) e João (4 anos) estudam em uma escola que segue a pedagogia Waldorf, na cidade de Piracicaba/SP. Hoje, dia 6 de dezembro, comemora-se o dia de São Nicolau. Neste dia, nas escolas Waldorf, uma cerimônia simples é realizada para que as crianças recebam os presentes trazidos por ele, que pode ser pão de mel ou carvão.

Ele tem um livro bem grande mesmo, que contém uma página para cada ser humano que vive na Terra! Nicolau anota tudinho: o que fazemos, e também o que deixamos de fazer! E para cumprir sua tarefa, possui duas canetas: uma com tinta preta e outra com tinta dourada! Com a caneta preta escreve sobre as coisas ruins que fizemos, e com a dourada, escreve sobre as nossas boas ações. Então, quando chega dezembro, Nicolau olha para as folhas de seu grande livro, uma por uma! Se aquela página com seu nome estiver mais dourada do que preta, certamente você receberá, no dia 6, deliciosos presentes: nozes para todos os seus bons pensamentos, pão de mel para seus bons sentimentos, e maçã para os bons atos que realizou naquele ano! E se sua página estiver mais preta que dourada? O que poderá chegar? Carvão? Pimenta? [link – https://jardimdasamoras.com.br/2021/11/02/sao-nicolau/].

É claro que todas as crianças recebem pão de mel! Mas, nesse movimento elas são convidadas a refletir sobre suas ações no mundo e avaliar aquilo que ficou para trás. Ao deixar meus filhos na escola, abri meu celular e me deparei com a seguinte postagem no Instagram:

No Brasil de hoje, atacaram um Papai Noel em Joinville por conta da cor vermelha. Em um shopping de Balneário Camboriú o Papai Noel é dourado. Nas lojas de uma rede do setor varejista o Papai Noel veste a cor azul.

Me lembrei de um livrinho de 47 páginas e capa vermelha – O suplício do Papai Noel, escrito por Lévi-Strauss. O livro publicado pela extinta editora Cosac Naify traz um texto delicadamente pontilhado com vírgulas, pontos e aspas em vermelho. Desde que o comprei, em 2008, retorno a essas páginas, próximo às comemorações de natal.
Lévi-Strauss aborda um fato, presenciado por ele, ocorrido com o Papai Noel em 1951, na França. Conforme podemos observar na notícia publicada no jornal France-Soir, em 24 de dezembro de 1951:

Papai Noel é queimado no átrio da Catedral de Dijon diante de crianças de orfanatos

Na ocasião, um boneco do Papai Noel foi enforcado e, em seguida, queimado na frente de crianças com o aval da Igreja que o considerava usurpador e herege. O acontecimento gerou polêmica e dividiu a opinião pública entre aqueles que defendiam ou não o Papai Noel. Lévi Strauss notou um estranho paradoxo presente nesse acontecimento. Os anticlericalistas defendiam Papai Noel, enquanto, por outro lado, a Igreja se posicionou ao lado da racionalidade e do espírito crítico e, portanto, contra o Papai Noel. Entretanto, ninguém havia perguntado por que os adultos inventaram Papai Noel. E é sobre esta questão que o livro se direciona.
Diante dos dois acontecimentos – dia de São Nicolau comemorado na escola dos meus filhos e postagem no Instagram sobre ataques ao Papai Noel vermelho no Brasil – uma memória involuntária fez com que eu correlacionasse o Brasil de hoje com o acontecimento em Dijon na França de 1951. O sacrifício do Papai Noel vermelho no Brasil de hoje mostra como estamos diante de um país que não existe mais. Neste dia 6 de dezembro, quando as crianças recebem magicamente os presentes de São Nicolau, alimentamos nas crianças a ilusão de que os presentes vêm do Além para que, de alguma forma, a nossa chama permaneça acesa. Diante disso, as crianças nos ajudam a acreditar na vida.
Deixo aqui um pequeno trecho do livro (que pode ser encontrado facilmente na internet), como forma de instigar sua leitura.

Observemos os ternos cuidados que temos com o Papai Noel, as precauções e os sacrifícios que aceitamos para manter seu prestígio intocado junto às crianças. Não será porque, lá no fundo de nós ainda persiste a vontade de acreditar, por pouco que seja, numa generosidade irrestrita, numa gentileza desinteressada, num breve instante em que se suspende qualquer receio, qualquer inveja, qualquer amargura? Sem dúvida, não podemos compartir plenamente a ilusão, o que justifica nossos esforços é que alimentada em outrem, ela nos oferece pelo menos uma oportunidade de nos aquecer à chama acesa nessas jovens almas. A crença que inculcamos em nossos filhos de que os brinquedos vêm do Além oferece um álibi ao movimento secreto que nos leva a oferta-los ao Além, sob o pretexto de dá-los às crianças. Dessa maneira, os presentes de Natal continuam a ser um verdadeiro sacrifício à doçura de viver, que consiste, em primeiro lugar, em não morrer. (LÉVI-STRAUSS, p.44-45)

 

Legenda da imagem: São Nicolau no meio do fogo. Créditos da imagem: Fernando Camargo.

Referências:
STRAUSS, Claude. O suplício de Papai Noel. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

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