Text-to-Speech : leitura e neurodivergências na academia

Faz mais ou menos uns quatro anos que eu não leio um texto acadêmico. Foi durante a quarentena que isso aconteceu comigo. Enquanto conseguia ler romances com conforto, aos poucos fui me dando conta de que ler textos acadêmicos ia se tornando um fardo, até que em algum momento eu simplesmente travei. Fiquei triste, me sentindo uma fraude, logo quando tinha finalmente deixado de trabalhar para me dedicar completamente à pesquisa e à carreira acadêmica.
Tá, falei que não leio mais, mas isso não é totalmente verdade. Foi para dramatizar um pouco, porque era bem dramática a minha situação quando não conseguia mais ler. A afirmação mais certa é: faz mais ou menos uns quatro anos que eu não SÓ leio textos acadêmicos. Eu leio e escuto.
No meio da culpa e da vergonha por não conseguir ficar mais de cinco minutos olhando para um texto, me lembrei da primeira vez que conheci alguém que usava um software leitor de PDF em voz alta, ou “Text-to-Speech ”. Foi durante a graduação em Ciências Sociais, quando cursei uma disciplina com um colega cego.
Ler e escrever são atividades fundamentais para pessoas que pesquisam. Quando comecei a cursar Sociais descobri que tinha que reaprender o que eram essas duas coisas. Depois, fui descobrindo também, com alguma surpresa e um tanto de tristeza, que as atividades de ler e escrever carregavam consigo um quê de elitismo intelectualizado. Eram tratadas como atividades nobres com regras muito bem delimitadas, e quem não conseguisse reproduzir essa coreografia rígida, bem….
Esse colapso, ou recusa, do meu corpo em ler me obrigou a pensar sobre algo que eu vinha soterrando a bastante tempo: o fato de ser uma pessoa neurodivergente. Fui diagnosticada de criança com TDAH, um transtorno que afeta diretamente a atenção e a aprendizagem. Quando criança, tive um certo acompanhamento, mas adulta eu simplesmente ignorei por muito tempo isso.
Procurei na internet como outras pessoas com TDAH lidavam com bloqueios na leitura, e os softwares de leitura em voz alta eram sempre citados. Resolvi experimentar, e hoje em dia não abro mão. Eles me ajudam a focar no texto, a criar ritmo. Escutar um texto e ler ele junto me trazem um conforto tão grande que sinto que só ler quase que nem é mais uma opção. Óbvio que isso traz algumas dificuldades, como por exemplo ter que ter o texto em PFD com OCR. Mas felizmente a grande maioria das coisas que leio estão disponíveis nesse formato. Depois de muitos anos testando, indico o app @voice para celular, e o plugin Read Aloud para ler no computador.
Já vi algumas caras feias por aí quando digo que escuto os textos. E também comentários sobre como a leitura é insubstituível. Mas trabalhando em um podcast de Antropologia, cada vez mais entendo a importância de abrirmos os modos como produzimos ciência, partindo de coisas tão pequenas como ler um texto. Só assim, quem sabe, vamos conseguir que pessoas diferentes produzam, com conforto e alegria, coisas diferentes.

 

Legenda da imagem: Ilustração mostrando a esquerda um ícone de documento de texto, no meio ondas sonoras e a direita uma mão segurando um celular. Créditos: https://cuseum.com/blog/2021/3/2/introducing-ai-powered-text-to-speech-for-audio-guides