Cortes e cicatrizes: corpos e subjetividades na tecnociência
As imagens de ciborgues, híbridos, que ocupam um lugar entre a artificialidade e uma suposta natureza já marcam presença nas produções artísticas, culturais e filosóficas pelo menos desde o século XIX, com figuras como Frankenstein. Entre as narrativas de mundos distópicos dominados por seres de inteligência artificial e as narrativas de paraísos tecnológicos apresentadas em livros, filmes, séries, performances, desfiles de moda, produções acadêmicas, podemos encontrar uma série de questionamentos muito interessantes e que pensam sobre o corpo, sobre sua artificialidade e sobre as possibilidades de produções e transformações subjetivas. Essas discussões abrem espaço para pensarmos que, como disse uma vez Preciado (2019), o que chamamos de subjetividade não é mais que a cicatriz deixada pelo corte na multiplicidade do que poderíamos ter sido.
Com a intenção de contribuir criticamente para esses debates, em sua condição política, levando em consideração as desigualdades e violências dessas formas de construção e transformação de corpos e subjetividades pela tecnociência, acaba de ser lançado o livro Biotecnologias, transformações corporais e subjetivas: saberes, práticas e desigualdades, organizado por Fabíola Rohden, Chiara Pusseti e Alejandra Roca e publicado pela ABA. O livro é resultado da articulação promovida pela Rede de Investigações Biotecnologias, Saúde Pública e Ciências na Vida e lança 12 trabalhos originais realizados por pesquisadoras e pesquisadores interessades em pensar as tensões dessas tecnociências corporais. Podemos dividi-lo em três eixos principais: 1) análises da produção do conhecimento; 2) análises envolvendo a produção de tecnologias de diagnóstico; 3) análises das práticas de intervenção corporal e tratamentos clínicos. De todo modo, é possível dizer que os trabalhos, no geral, circulam entre esses eixos.
A colaboração do Labirinto na elaboração do livro se deu pela construção do capítulo Células-tronco adultas, potências condicionadas e biotecnologias de transformação escrito pela Daniela Manica e por mim. No texto, que é resultado de uma pesquisa mais ampla sobre o uso de células-tronco originadas a partir de tecidos do sangue menstrual, nós realizamos a análise de vários materiais: dois livros de divulgação científica escritos por cientistas brasileiros, “Células-tronco: o que são? Para que servem?” (Rehen; Paulsen, 2007) e “Células-tronco: promessas e realidade” (Pereira, 2013); entrevistas conduzidas com os três cientistas autores em 2020 e material de mídia (entrevistas e reportagens em revistas, jornais e televisão) sobre as pesquisas deles. Nosso texto ficou subdividido em quatro partes: Regeneração e Imortalidade; Biotecnologias de transformação; Potências condicionadas; E daí, quer que eu faça o que?
Iniciamos a primeira parte “Regeneração e Imortalidade” falando sobre o livro “Células-tronco: o que são? Para que servem?” (Rehen; Paulsen, 2007), que logo em suas primeira páginas discorrem sobre o mito grego de Prometeu que, como punição por tentar dar vida a um boneco de barro, é acorrentado à uma montanha onde uma águia todos os dias, repetidamente, lhe comia o fígado. Outra história, dentre as apresentadas pelos autores, é a de Ibjis e Erês, orixás-crianças da Umbanda. De acordo com os autores, eles também são conhecidos como Acta e Passio ou São Cosme e Damião, e ficaram conhecidos por realizarem um dos primeiros “transplantes de pernas” da história. É válido notar que, segundo os autores, esse primeiro ato cirúrgico ocorreu “transplantando a perna de um escravo mouro em um componente do clero, salvando-lhe a vida” (Rehen; Paulsen, 2007).
O que pensamos desse movimento de relacionar as pesquisas com células-tronco a um desejo antigo da humanidade, é que ele configurava uma tentativa de compor as disputas políticas sobre os destinos das pesquisas com células-tronco que marcavam o período de publicação do livro. Percebemos que nesse movimento, ao se oporem aos discursos religiosos, os cientistas tentavam determinar os sentidos possíveis do embrião. Fazendo dele “um objeto em essência, separado e/ou purificado” (Latour, 1994. apud, Farias). No livro “Células tronco: promessas e realidades”, Lygia da Veiga Pereira (2013), diz que essa disputa política e ontológica sobre a essência do embrião foi contornada pela possibilidade jurídica de “violabilidade” de entidades vivas. “Que formas de vidas nós permitiremos violar?” (Pereira, 2013, p. 71)
Terminamos essa primeira parte refletindo sobre o subtítulo do livro de Stevens Rehen e Bruna Paulsen, “para que servem?”. A resposta para essa pergunta, que determina um sentido utilitário, é dada no último tópico do livro chamado “conclusões e expectativas para o futuro” em que são especulados alguns resultados que seriam possíveis para os 20 anos subsequentes. Apesar das ressalvas feitas pelos autores, há a abertura para uma certa “capitalização do futuro” (Oliveira, 2009) feita pelo discurso científico, que busca o apoio social para os discursos médico-científicos. Oliveira (2009) compara esse movimento de inflação das expectativas com o movimento de financeirização do capital, “pois ela é uma forma de garantir, por meio da discursividade, que a exigência atual de uma crença no futuro, ainda que imaginária, seja satisfeita. Prometer regeneração e extensão da vida, senão a “imortalidade”, configurou parte dos argumentos lançados para justificar investimentos e autorizações para a realização das pesquisas científicas com células-tronco” (Manica, Pereira, 2021).
Na segunda parte do capítulo, que chamamos de “biotecnologias de transformação”, apresentamos um trecho da entrevista da Lygia Pereira em uma programa de televisão em que a autora desenvolve uma analogia de sua ação tecnocientífica que performa como cientista, com o livro do escritor Monteiro Lobato
Marília Gabriela: […] você era apaixonada pelo Monteiro Lobato, por um livro chamado “A reforma da natureza”, em que a Emília resolve que a vaca devia nascer com uma torneira… Lygia Pereira: … que a melancia tinha que nascer numa árvore grande… (risos) M.G.: De alguma forma, vocês hoje, na pesquisa, não estão sendo as “Emílias” da vida? L.P.: Sem dúvida. Você tem toda razão. M.G.: Tentar fazer o que a natureza não faz por conta própria. L.P.: Exatamente, essa reforma da natureza. Quer dizer, adaptar… Sim, mas nós estamos fazendo isso há milênios, só que com técnicas menos sofisticadas. Se você vê uma foto do que é o milho original, é uma coisa micro retorcida e seca e, por cruzamentos, a gente transformou nessa delícia. Quer dizer, a gente vem fazendo essa reforma da natureza há milhares de anos. Desde que a gente começou a agricultura, a agropecuária, só que hoje em dia a gente faz com coisas mais sofisticadas, à medida em que nosso conhecimento [permite]… a gente põe o gene lá dentro da soja, ela fica resistente a não sei o quê, né? Então, a gente, de alguma forma, está brincando de Deus, se você quiser dizer assim… (Pereira, 2011a).
Como podemos perceber na fala da cientista, há a ideia de que a natureza está sendo reformada, “ajudada”, de que a tecnociência introduz intervenções problemáticas no mundo não é nova e configura uma discussão clássica na forma como a ciência e a tecnologia são divulgadas e pensadas na perspectiva euroamericana (Haraway, 2009; Latour, 1994 apud Manica, Pereira, 2021). Além disso, também a insistência na separação entre natureza e cultura. Nesse momento do capítulo também discutimos como, de certa forma, essa discussão sobre a viabilidade ou proibição das pesquisas atualizou o que Haraway (2007) chamou de o fetichismo do mapa ao falar de genoma humano. A ideia de que as células continham o “mapa completo” para a formação de um corpo humano.
Já nos últimos dois trechos do capítulo realizamos, a partir do material, uma crítica da noção de neutralidade e universalidade científica, situando o lugar periférico e pouco autônomo das pesquisas brasileiras em relação à produção científica global, assim como o não-lugar das células tronco originadas a partir do sangue menstrual, mesmo que os resultados das pesquisas que utilizavam esse material tenham sido bastante positivos.
Referências:
FARIAS, D. Entre o Ser e o Nada: um ensaio de antropologia simétrica sobre os discursos proferidos pelos cientistas e veiculados pela imprensa no processo que levou à aprovação do uso de embriões humanos nas pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil. 2009. Tese (Doutorado em Antropologia). Universidade Federal de Pernambuco, Recife
HARAWAY, D. 1995. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, número 5, pp. 7-41.
HARAWAY, D. Modest_Witness@Second_Millennium.FemaleMan©Meets_ OncoMouseTM. London: Routledge, 1997
MANICA, D., GOLDENBERG, R.; ASENSI, K. CeSaM, as células do sangue menstrual: gênero, tecnociência e terapia celular. Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares, UERJ, v. 20, p. 93-113, 2018
MANICA, D., PEREIRA, B. Células tronco adultas, biotecnologias de transformação e potências condicionadas. ABA publicações. p. 53-82, 2021.
PEREIRA, L. V. Células-Tronco: Promessas e Realidades. São Paulo: Moderna, 2013.
Preciado, – Um apartamento em Urano, Crônicas da Travessia, 2019.
REHEN, S.; PAULSEN, B. Células-tronco: o que são? Para que servem? Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2007.
Legenda da imagem: Estudo de um corpo.
Créditos da imagem: Isadora Romera (@garatujas.isa)