Enciclopédia Diferença e Saúde em Perspectiva

Leucopenia

Agora, vamos aos leucócitos. Também conhecidos como glóbulos brancos, os leucócitos são populares por, grosso modo, defender o organismo de humanos e alguns não-humanos de ataques exteriores, ou mesmo interiores – em se tratando de doenças autoimunes –.  Em relação a esta importante célula, Muniz (2021) apresenta um evento intrigante em sua etnografia, incitando-me a descrever as maneiras pelas quais podemos refletir acerca das intrincadas relações entre os leucócitos, saúde e raça. Em uma das conversas que teve ao longo de seu trabalho de campo, Muniz descreve como uma de suas interlocutoras, em dado momento, afirma de forma bastante categórica que pessoas negras, de um modo geral, têm leucopenia. Em outras palavras, possuem uma condição genética caracterizada pelo baixo nível de glóbulos brancos, podendo ser um fator de preocupação caso o paciente portador de leucopenia esteja passando por um processo infeccioso.

Contudo, sua interlocutora posteriormente mostra-se equivocada, reafirmando que, na verdade, a taxa de leucócitos de pessoas negras já é biologicamente menor quando comparada com a de pessoas brancas. Ou seja, uma menor taxa de leucócitos não indica, necessariamente, leucopenia. Assim, esta “confusão” em relação às taxas de leucócitos geram dois constrangimentos. O segundo indica que, caso as taxas de leucócitos de pacientes negros sejam interpretadas a partir do parâmetro de normalidade – este último elaborado com base nos índices de pessoas brancas –, elas estarão sempre anormais ou abaixo do esperado, sendo tratadas como portadoras de leucopenia, quando na verdade não a possuem. O segundo diz respeito a como, ao tomar as taxas de leucócitos de pessoas brancas como normais, o paciente negro que pode estar sendo acometido por um processo inflamatório está sujeito a ter seu resultado “lido como estando dentro da normalidade.” (Muniz, 2021: 344).

De acordo com uma cartilha publicada pelo Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti acerca das taxas de leucócitos e as controvérsias presentes em sua interpretação, possuir glóbulos brancos abaixo da média não necessariamente caracteriza leucopenia, e o desconhecimento acerca dessa informação constitui-se em uma “uma das principais causas de encaminhamentos de pacientes e indivíduos sadios ao hematologista” (Manual do Paciente – Leucopenia 2014: 4). Além disso, há algo intrigante na cartilha publicada pelo Instituto, pois há um alerta informando que a maioria dos casos encaminhados ao hematologista de leucopenia são temporários ou “não constitui leucopenia verdadeira, como é o caso da ‘leucopenia racial’” (Ibidem:4, grifo meu). Esta última pode emergir na interpretação de profissionais da saúde quando analisarem as taxas de leucócitos de pacientes negros que, como já indiquei, são biologicamente mais baixas em relação ao parâmetro de “normalidade”, parâmetro de normalidade este que toma o corpo branco como universal e corpos não brancos como refratários (Muniz, 2021). 

As taxas de leucócitos e as maneiras “corretas” de sua interpretação chamam a atenção para uma controvérsia acerca do estatuto da raça. Nesse sentido, antes de tomá-la como um construto social de modo a negar sua existência biológica o que Wade (2010), M’Charek (2013), M’Charek, Schramm & Skinner (2014) e Calvo-Gonzáles (2012) propõe é tomar raça como um híbrido de natureza e cultura  nos termos de Latour (2019). Contudo, é válido pontuar que não se está defendendo neste verbete o seu estatuto biológico, o que está sendo proposto aqui é tomá-la como um objeto material semiótico. 

Michel-Rolph Trouillot, em “Adieu, culture: a new duty arises”, reflete acerca do estatuto da raça no conhecimento antropológico norte-americano. De antemão, ele questiona se não aprendemos, de uma vez por todas, que raça é uma construção sociocultural. Em suma, está sublinhando que é preciso refletir sobre raça a partir de uma perspectiva que não esteja ancorada em pressupostos biologizantes. No entanto, Trouillot apresenta-nos um impasse em seu texto, sobretudo quando afirma que “se a raça não existe, o racismo existe; e cunhar raça como uma construção nos dá pouca noção do racismo.” (Ibidem: 106, tradução minha) e, consequentemente, de seus efeitos concretos. Assim, nos resta ficar com o problema (Haraway, 2016) e buscar refletir sobre os efeitos da raça para a saúde a partir de suas dobras (M’Charek, 2014).

 

Referências

CALVO-GONZÁLES, Elena. Usos políticos da leucopenia e diferença racial no Brasil contemporâneo. In: SANTOS, Ricardo; GIBBON, Sahra; BELTRÃO, Jane (orgs.). Identidades emergentes, genética e saúde : perspectivas antropológica. Rio de Janeiro : Garamõnd; Rio de Janeiro : Editora Fiocruz, 2012.

HARAWAY, Donna. Staying with the trouble : making kin in the Chthulucene. Durham : Duke University Press, 2016

M’charek, Amade. Race, Time and Folded Objects: The HeLa Error. Theory, Culture & Society, 31(6), 29–56, 2014.

INSTITUTO ESTADUAL DE HEMATOLOGIA ARTHUR DE SIQUEIRA CAVALCANTI. Leucopenia: informações básicas aos pacientes e familiares. Edição revisada, 2014.

MUNIZ, Tatiane. De corpos universais a corpos refratários: branquitude e efeitos raciais das tecnologias biomédicas. In: ROHDEN, Fabíola; PUSSETTI, Chiara; ROCA, Alejandra. Biotecnologias, transformações corporais e subjetivas : saberes, práticas e desigualdades. Brasília, DF : ABA Publicações, 2021.

TROUILLOT, Michel-Rolph. Adieu, Culture: A New Duty Arises. In: _____. Global Transformations: Anthropology and the Modern World. New York: Palgrave, 2003, p. 97-116.

 

Palavras-Chave: leucócitos; glóbulos brancos; imunologia; leucopenia; raça

 

Autoria: William Rosa

 

RETORNAR AO SUMÁRIO