Estamos protegendo o que de quem?

Ônibus lotado com pouco espaço para se locomover, e pessoas apáticas à rotina.

Crédito foto: Ilustradore Pips/ Lantec UFSC.

 

O último ano tem sido tão pesado por conta da pandemia da Covid-19 que fica muito difícil refletir sobre outros assuntos que considero tão preocupantes quanto. Foram tantas notícias de mortes e perdas em um curto período de tempo que o luto se tornou algo inevitável. Uma dor de luto que se refletiu em silêncio.

Recordo que nos primeiros meses da chegada da pandemia no Brasil o silêncio era tanto que muitos estranharam os “estrondos” que ouviam dos poucos aviões que cortavam o céu. Era estranho poder ouvir sons, que até o momento ficaram abafados pela rotina exaustiva e barulhenta das metrópoles. O silêncio, soava como um sinal de respeito com aqueles que partiram e também com o vírus até o momento desconhecido.

Impossível não fazer as assimilações com que vivemos. Não que já tivéssemos passado por algo semelhante, eu mesmo desconheço ter vivenciado algo dessa magnitude. Mas, na minha infância, por exemplo, lembro da minha avó, que em dia de tempestade pedia para que todos fizessem silêncio, em sinal de respeito à natureza. Ficávamos todos juntos e quietos, olhando um ao outro, na pequena sala, esperando a tempestade passar e pedindo para Iansã levar rápido a chuva para longe.

Considero a situação semelhante apenas no silêncio e no pedido aos orixás para que leve esse vírus para longe. Não existem metáforas, nem símbolos para a atual situação: infelizmente existem pessoas se contaminando e morrendo. E no comando de nossas vidas um governo negacionista que rema contra qualquer ciência que se diz favorável à vida. A sensação, portanto, que me toma é de medo, angústia e desalento.

Ao mesmo tempo, pensei como parte dessa sensação que tomava o meu corpo, me parecia muito conhecida. Não era estranho o que eu estava sentindo. Por alguns segundos esqueci o real motivo de sentir essa sensação, mas logo recobrei os sentidos e lembrei. Sou preta e pobre que vive no Brasil. Ser preta, pobre e indígena no Brasil significa saber que os números e estatísticas nunca estarão do seu lado de forma positiva.

O ambientalista Ailton Krenak em uma reflexão no documentário Guerras do Brasil.doc – exibido na Netflix – a respeito de sua vivência como indígena no Brasil, colocou de forma clara, essa experiência dolorosa. “Nós estamos em guerra, para nossa gente a guerra nunca acabou. A paz que se vende faz parte de uma falsificação ideológica para mantermos a coisa funcionando”.

Poxa, a sensação é realmente essa: vivemos em um campo de guerra e o nosso corpo é o alvo inimigo. Exemplos de violência infelizmente não faltam. Seja na bala perdida da polícia que encontra o corpo preto ou no feminicídio onde mulheres negras são maioria no número de mortes. Uma finitude cruel de v-i-o-l-ê-n-c-i-a.

A pandemia em si, só escancarou a desigualdade social tendo em vista a forma com que foi conduzida no Brasil. Os mais ricos e escolarizados se beneficiam em todos os âmbitos, desde a prevenção podendo ficar em suas casas e trabalhando de home office, até a estrutura hospitalar, tendo acesso aos melhores equipamentos, médicos e recentemente se vacinando em outros países.

O vírus então que surgiu, para contaminar a todos sem distinção, se tornou mais uma arma de guerra nas mãos daqueles que sempre tiveram interesse na desumanização e extinção de preto pobres e indígenas brasileiros.

O biólogo Atila Iamarino, afirmou em uma live com Deisy Ventura, doutora em direito e professora titular da Faculdade de Saúde Pública da USP, que pretos, pardos e indígenas já são maioria no número de mortes por coronavírus no Brasil. E devido a isso, podemos categorizar o ocorrido como genocídio. Houve bairros periféricos da Grande São Paulo em que o número de mortos por coronavírus chegou a ser três vezes maior que os bairros de outras regiões mais ricas.

“Eu tenho vontade de parar de trabalhar, mas não vou parar pelos meus filhos” disse uma colega minha de serviço. Trabalho em um hospital como auxiliar de laboratório. E assim como eu, minhas colegas na lavanderia, na higiene, na cozinha, na manutenção e na segurança são as que mantêm “a coisa funcionando” porque os nossos serviços são classificados como essenciais.

Antes da vacinação, grande parte desses meus colegas se contaminou. Alguns convivem com as sequelas até hoje, como: visão turva, fraqueza, tosse, cansaço e dores que eram inexistentes antes da pandemia. Outros não conseguiram tomar a vacina a tempo. Se despediram da vida buscando manter seu sustento. Não me recordo de grandes homenagens por parte da empresa para esses. Apenas me lembro dos tristes olhares por parte dos funcionários, que se intercruzam nos corredores seguidos de desabafos de amigos: “Minha amiga se foi, ela foi tão boa para mim, você se lembra dela?”. Quando não, uma pequena nota de pesar na circular.

Hoje pela manhã ao abrir as notícias do jornal me deparei com uma foto que exemplifica o caos da desigualdade. Na imagem um ônibus lotado de pessoas sem espaço para se locomover a caminho do trabalho. Fiquei novamente sem reação.

A pergunta que fica é: estamos protegendo o que de quem? O vírus quando chegou ao Brasil, não esperava tamanha receptividade e aliados tão fiéis. O racismo escancarado, o elitismo cruel, reflete nos resultados que vivenciamos diariamente. As perguntas ficam apenas a critério de reflexão, porém a guerra, essa continua sem tréguas e sem perdão.

1 Comment

  1. Silvia Campos

    Adorei o artigo, nos trás grandes reflexões.
    É exclarecedor
    Sucesso.

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