“Método seringa”: Saberes, materiais e disputas da inseminação caseira no Brasil
A pesquisa de mestrado que venho desenvolvendo, tem como objetivo investigar as práticas de inseminação caseira (IC) no Brasil. As ICs são realizadas com técnicas similares às de uma inseminação artificial, mas são feitas em ambientes domésticos (como a casa do doador de sêmen ou do casal que busca engravidar), sem custos. Consiste em um procedimento no qual, em geral, um doador conhecido ejacula em um pote coletor de plástico e, depois, aspira o sêmen com uma seringa descartável sem agulha, passando a seringa à tentante ou sua parceira, que a inserem no canal vaginal e injetam o sêmen. Contei mais sobre esta técnica no episódio “Genes à la carte” do podcast 37 Graus.
No contexto brasileiro, as ICs são realizadas pelas chamadas “tentantes”: principalmente representadas por mulheres cis lésbicas e sapatonas em relacionamentos, embora haja também mulheres solteiras, outras em relacionamentos cisheterossexuais e casais de mulheres cis e homens trans. Por sua vez, neste contexto das ICs, a categoria identitária dos “doadores” diz respeito a homens cisgênero que se oferecem para realizar doações de sêmen para práticas conceptivas caseiras. Os grupos de Facebook voltados para as práticas de inseminação caseira são o principal meio pelo qual tentantes e doadores se encontram e se conectam. Mas também é onde discutem e constroem as normas, limites, regras, procedimentos e manejos do conjunto de saberes particulares do contexto das inseminações caseiras.
O recorte de minha pesquisa, cujo campo se deu em dois destes grupos digitais, está em torno de mapear e analisar em especial este fenômeno da criação e discussão coletiva de um método próprio da inseminação caseira, conhecido como “método seringa”. Esse método é resultado de um conjunto particular de saberes, técnicas, gestos e materialidades que são construídos e discutidos coletivamente de forma autônoma e experimental nos grupos de inseminação caseira do Facebook e Whatsapp, além das práticas cotidianas das inseminações feitas por tentantes e doadores.
Ainda que compartilhem alguns elementos em comum com as ferramentas tecnológicas da reprodução assistida, as materialidades da inseminação caseira e seu conjunto de saberes-fazeres são distintas: nos aspectos físicos de sua materialidade e nos agentes sociais que os manejam e com ele se comunicam; nas maneiras, técnicas e corpus de saberes pelas quais essas materialidades são manejadas; e, ainda, nas formas pelas quais esses objetos se relacionam com o corpo, seus fluidos e células.
De um lado, no contexto das reproduções assistidas: temos os ambientes clínicos e laboratoriais; temos cientistas, médicos, especialistas controlando as tecnoferramentas e manejando a reprodução, feita a partir dessa intervenção biotecnológica e biomédica; temos um banco de espermas cujas doações são anônimas e administrados pelo controle das clínicas particulares de fertilidade; e temos um conjunto de saberes, técnicas e procedimentos biomédicos que orientam as práticas da reprodução assistida.
Do outro, no contexto das inseminações caseiras, temos: ambientes domésticos e virtuais; temos doadores, tentantes e parceires/as como agentes que manipulam autonomamente as materialidades tecnológicas (algumas destas pessoas se tornando e sendo colocades no lugar de “especialistas” das práticas de ic); temos uma rede complexa de relações e conexões digitais construída e administrada de forma autônoma e coletiva por doadores e tentantes não-anônimos, em torno de um conjunto de regulações das plataformas digitais; e temos um conjunto de saberes e técnicas que incorporam e se apropriam de conhecimentos e procedimentos do corpus epistemológico biomédico, transformando-o e adicionando a ele novos e particulares elementos.
A inseminação caseira e a reprodução assistida estabelecem, assim, um diálogo que é constantemente tensionado pelas continuidades, reconfigurações e rupturas que uma faz da outra. Essas relações disputadas são características da própria identidade da inseminação caseira enquanto técnica e contexto, já que ela se constrói em grande parte em torno dos contrastes com as práticas clínicas, mas ao mesmo tempo são marcadas por peculiaridades importantes, as quais busco explorar em minha pesquisa.
Legenda da imagem: Seringa criando rede em papel. Créditos da imagem: Flora Villas