Uma experiência de leitura coletiva de “Dysphoria mundi: o som do mundo desmoronando”, do filósofo Paul B. Preciado

Entre o início de maio e o final de agosto, ocorreu no Labirinto a leitura coletiva de Dysphoria Mundi: o som do mundo desmoronando, a mais recente obra do filósofo Paul B. Preciado. Esta atividade, totalmente gratuita, foi facilitada por mim, em um exercício de leitura e reflexão coletiva sobre o livro.

Os encontros ocorreram nas noites de quintas-feiras, das 19h30 às 21h30, via videochamada. Foram ao todo oito encontros quinzenais, nos quais o livro foi dividido para melhor compreensão. Cada encontro começou com cerca de uma hora de exposição introdutória ao texto por uma pessoa voluntária, estabelecendo conexões com a trajetória filosófico-política de Preciado, seguida de uma hora de discussão coletiva.

Considero Preciado um dos filósofos mais instigantes da atualidade e uma das principais vozes na teoria queer. Em obras como Manifesto Contrassexual, Testo Junkie, Um Apartamento em Urano e Eu sou o monstro que vos fala, somos convidados/as/es a refletir sobre os processos de produção de corpos e subjetividades nas práticas cotidianas de saber-poder, bem como nos modos de resistência frente às arquiteturas políticas que aprisionam desejos e vidas.

Dysphoria Mundi se apresentou como uma obra densa que, ao longo de suas mais de quinhentas páginas, nos transportou de volta ao indigesto período da pandemia de covid-19. Escrito durante a pandemia, enquanto Preciado se encontrava convivendo com o vírus e isolado em seu apartamento em Paris, o livro busca diagnosticar e relatar o que estava acontecendo naquele momento.

No livro, Preciado revisita o conceito psiquiátrico de “disforia” do início do século XX. Relata que disforia foi historicamente usada como sinônimo de transtornos psiquiátricos, referindo-se a um transtorno de humor que torna a vida cotidiana insuportável. Etimologicamente, disforia refere-se a algo que é difícil de suportar. Essa é justamente a herança do conceito de disforia de gênero, utilizado para descrever diagnósticos trans, conforme o autor.

De acordo com o filósofo, o próprio livro é disfórico. Composto por relatos íntimos, diálogos teóricos, orações fúnebres e uma carta para noves ativistes, Dysphoria Mundi oferece uma leitura do estado de coisas a partir de referências feministas, queer, trans e antirracistas. O que essas perspectivas nos ensinam a observar? Partindo desse questionamento, o livro se desenvolve como uma cartografia móvel do cenário disfórico em que nos situamos.

A noção de “dysphoria mundi” busca pensar a nova ordem política, este momento de transição planetária em que vivemos, que abrange o antropoceno, as mudanças climáticas e as transformações políticas, econômicas e midiáticas. Nesse contexto, o anthropos é reinserido no centro do debate, mas agora como um “anthropos queer”, que evidencia as interseções de gênero, sexualidade e raça que compõem este cenário.

Na visão de Preciado, as mudanças climáticas e seus efeitos, como a pandemia de covid-19, não podem ser reduzidos ao protagonismo humano e ao apocalipse iminente. Precisam ser vistos como uma oportunidade para repensar as separações modernas entre natureza e cultura, humanos e não-humanos, ciência e política, corpo e mente.

Trata-se de um chamado radical à ação, voltado para repensar os modos de atuação política, de vida em sociedade e de produção científica. Este chamado deve estar atento às conexões entre processos de transformação ambientais, econômicos, subjetivos e às múltiplas violências que decorrem da “biopolítica pretrossexoracial”.

Segundo Preciado, esse regime tem suas raízes na expansão do capitalismo colonial do século XVI, com suas epistemologias racistas e sexistas oriundas da Europa. Assim, classifica e hierarquiza os seres viventes em categorias binárias, pautadas em raça, sexo e sexualidade. Em termos energéticos, é um regime que depende dos combustíveis fósseis para sua manutenção. É esse regime que nos lançou no cenário de destruição em que nos encontramos atualmente, e com o qual precisamos de organizações coletivas urgentes para superar.

Dysphoria Mundi oferece importantes contribuições para a reflexão crítica e a atuação política. No grupo de leitura, as proposições de Preciado nos incitaram a questionar apostas excessivamente otimistas diante do atual cenário de destruição, além de refletir sobre a participação do autor nas lutas coletivas para além do eixo EUA-Europa. Que es noves ativistes e as multidões queer possam acessar, ver e ouvir Preciado em outras partes do mundo, incluindo desde o Brasil.

 

 


Captura de tela do primeiro encontro do grupo de leitura de “Dysphoria mundi: o som do mundo desmoronando”, do filósofo Paul B. Preciado

 

Descrição da imagem em destaque: A imagem apresenta um fundo em tons rosados pastel, com um desenho de Paul B. Preciado à esquerda. O desenho retrata uma criatura monstruosa nua de cor rosa, com chifres e asas, posicionada sobre o planeta Terra partido ao meio. Na parte superior, está escrito “Leituras no Labirinto”. Logo abaixo, encontra-se o título do livro: “Dysphoria Mundi: o som do mundo desmoronando – Paul B. Preciado”. Na parte inferior, há o texto “Oferecimento: Kris H. de Oliveira – Labirinto/Unicamp”. Créditos da imagem: Dysphoria Mundi: o som do mundo desmoronando, Paul B. Preciado.