Uma projeção de futuro pós-apocalíptico na série 3%: tecnociência, natureza e cultura

A série brasileira 3% da Netflix (Pedro Aguilera, 2016) foi uma das mais assistidas no Brasil e no exterior. Nela, temos diversas projeções de um futuro pós-apocalíptico, no qual recursos da Terra se esgotam e a população vive com o que resta. Diversas crises no planeta deixaram devastação e escassez de recursos.
No primeiro episódio, vemos imagens do “Continente” e uma legenda: “Amazônia Subcontinental”, nos fazendo entender que a história se passa no Brasil. O “continente” é onde vive a maioria da população, com um cenário catastrófico, sem nenhum sinal de natureza viva (árvores, plantas e flores). Entendemos que ali se vivia uma vida comum de uma grande cidade, como São Paulo (onde boa parte da série foi gravada).
Por outro lado, temos o Mar Alto, uma sociedade criada pelo “casal fundador”, em uma ilha distante. As grandes inovações tecnológicas fazem com que exista vida por lá, e que eles tenham o monopólio das forças militares, controle e uma dominação ideológica sobre as pessoas. As ruas do Continente são cobertas por câmeras de segurança e os habitantes possuem um Registro – um chip implantado atrás da orelha com informações sobre o indivíduo, captador de voz e acesso à localização em tempo real. A ideologia dominante é meritocrática, o que alimenta a esperança da vida dos que vivem no Continente de, através do sofrimento e labuta, no futuro terem uma vida melhor.
Os que nascem no Continente, ao completarem vinte anos têm o direito de passar pelo “Processo”, que contém provas físicas e psicológicas. O ritual é o que separa esses dois mundos. Apenas 3% dos que participam conseguem entrar para o Mar Alto, os outros nunca mais têm uma nova chance. Blogs, mídias e artigos científicos fizeram grandes analogias do Processo de 3% e os grandes vestibulares do Brasil, que permitem a entrada nas Universidades.
Além desses dois núcleos, temos também a “Causa” e a “Milícia”. A Causa é um grupo de militantes organizados e armados que luta contra toda a ideologia meritocrática do processo e do Mar Alto. Já a Milícia é um grupo criminoso que também vive no Continente tentando conter o controle sobre os habitantes, sem um intuito tão claro, usando da violência a fim de manter alguns privilégios de poder.
Com base no texto de Danowski e Viveiros de Castro (2015), toda projeção de fim de mundo pressupõe uma origem do mundo e, também, qual a relação estabelecida entre o mundo e a humanidade. Os personagens do Continente têm em seu imaginário um início de mundo do tipo Éden, de Adão e Eva, enquanto a população do Mar Alto pode imaginar um início de mundo descrito pelo clássico evolucionismo e a teoria darwinista da seleção natural. A preparação e o desenvolvimento tecnológico, preparado para receber as pessoas do Continente, nos atrai para um imaginário edênico. O Mar Alto expressa a imagem de um mundo puro, que só aguarda a chegada da humanidade, assim como no mito do Éden (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 37). A série é construída pela relação antropocêntrica entre nós e o mundo, a partir da ideia do fim do mundo e da possibilidade de recriar a natureza. A humanidade é o ponto central tanto do fim como da reconstrução.
O Processo funciona como um rito de passagem, onde após a separação do Continente, os participantes se encontram em uma margem (Turner, 1974; Van Gennep, 2011). Além disso, existe o ritual de purificação: uma “vacina” que marca o corpo e esteriliza os recém chegados ao Mar Alto (os tornando infecundos). O líder do processo diz que a hereditariedade é quem sustenta o absurdo do mundo em que viveram.
A série, portanto, nutre nosso imaginário para refletirmos sobre um mundo depois do fim e a reconstrução de um mundo a partir da tecnologia. Podemos refletir sobre as tecnologias, um mundo cibernético, tecnociência, aspectos de controle, a relação entre natureza e cultura, conflitos políticos sobre tecnologias e ideologias sustentadas e pautadas por ela. A tecnologia em 3% torna-se o significado e o significante da ideologia que abarca as duas sociedades do enredo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHARLONE, C; GIANNECCHINI, D; LIBARDI, D; CREMA, J. 3%. 2016. 2018.

DANOWSKI, D; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis, SC: Cultura e Barbárie, 2015.

TURNER, V. “Liminaridade e Communitas” In: O Processo Ritual. Petrópolis, RJ: Vozes, 1974.

VAN GENNEP, A. “A passagem material”. In: Os ritos de passagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011 [1909].

https://jornal.usp.br/cultura/a-primeira-serie-brasileira-na-netflix-3-e-da-usp. Acesso em 12 de novembro de 2021.

https://exame.abril.com.br/estilo-de-vida/2a-serie-mais-devorada-na-netflix-e-brasileira/. Acesso em 12 de novembro de 2021.

 

 

Legenda da imagem: Cartaz de divulgação da série 3%. Créditos da imagem: https://canaltech.com.br/entretenimento/curiosidades-3-porcento-serie-netflix-170127/

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